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Revoluções: DNA ou Proteínas?

24/12/2011
( 1,31 Mb )

 

Há um certo modismo filosófico bizarro que afirma que as crenças de povos pré-científicos são tão válidas para explicar o mundo quanto as teorias da ciência moderna. Essa corrente, que assume vários nomes, como multiculturalismo, desconstrucionismo, estudos culturais etc., é às vezes agrupada sob o termo pós-modernismo. Os pós-modernistas vêm grande significação no caráter provisório das teorias científicas. Vez por outra, modelos universalmente aceitos – que eles gostam de chamar de “paradigmas” – são demonstrados falsos. Sendo assim, dizem eles, nenhuma ideia é eterna. Não há como demonstrar que uma ideia é verdadeira. Uma determinada teoria é tão boa quanto qualquer outra, mesmo que as duas sejam mutuamente contraditórias. Esta coluna procura mostrar, através de exemplos, que essa conclusão não se justifica e está equivocada. Os exemplos são numerosos e surgem a toda hora, em laboratórios e instituições científicas espalhadas pelo mundo. E são publicados todos os meses em revistas como Nature, Science e muitas outras. 
 Por sinal, “Revoluções”, o nome desta coluna, é outra palavra querida dos pós-modernistas. Mas meu conceito de revolução científica é diferente do deles. Para os pós-modernistas, a atividade científica é pouco mais do que um fenômeno sociológico, em que não importa muito o mérito relativo de diferentes teorias. Uma revolução científica é a substituição, a muito custo, de uma teoria por outra. Antes de ser descartada, a teoria substituída é vigorosamente defendida por um grupo interessado em manter seu status na ordem social constituída. Casos assim acontecem, mas essa abordagem da História da Ciência é muito limitada. Para mim, uma revolução científica acontece quando a ciência resolve dúvidas sobre o mundo, melhorando nosso entendimento dele. O que é errado passa a ser conhecido e o que não era certo, em muitos casos, torna-se certo. Para sempre.
Em princípio, todo conhecimento científico é provisório. Isso reflete uma postura de humildade na prática científica. Diferentemente das ideologias políticas e das religiões, a ciência não se apega de maneira arrogante a nenhuma ideia. Qualquer noção pode ser descartada, a qualquer momento, se forem coletados dados sobre o mundo real que a contrariam. Muitas o são, ao serem refutadas por observações. O árbitro final da validade de uma teoria são os experimentos. Em princípio, a ciência pode não determinar com certeza qual é a verdade, mas ela determina com certeza, todos os dias, o que não é verdade. Isso, por si só, já a torna superior às crenças tradicionais.
A aplicação desse princípio saudável pelos cientistas na busca pela verdade não implica, na prática, que todas as teorias científicas serão infalivelmente descartadas. Muito pelo contrário. Com o tempo, muitas teorias passam a ser avassaladoramente apoiadas pelas evidências, a ponto de serem promovidas à categoria de fatos. Por exemplo, ninguém (com exceção de fanáticos e excêntricos) contesta o fato de que a Terra tem o formato próximo ao de uma esfera. Hoje em dia é possível confirmar isso diretamente. Basta fotografar nosso planeta de qualquer um dos milhares de satélites artificiais atualmente em sua órbita. No passado, entretanto, esta era uma questão debatida. O fato de a Terra se mover também já foi questionado. Esses são apenas dois exemplos óbvios. Porém, a maioria do que a ciência moderna revela já foi indeterminado no passado – da constituição dos menores pedaços da matéria até nosso lugar no Universo.
O erro dos pós-modernistas foi ter generalizado as coisas. O fato de algumas teorias científicas se tornarem obsoletas não quer dizer que todas terão o mesmo destino. Para um pós-modernista, a teoria de que são espíritos maus que causam tuberculose é tão válida quanto a teoria de que essa doença é causada por germes. A ideia de que a Terra é esférica é tão boa quanto a ideia de que ela é plana. O intelligent design é tão válido quanto a evolução... você pegou a ideia. 
Não estou aqui construindo um straw man – caricaturando ideias contrárias às minhas para que se tornem um alvo fácil. Sei que parece covardia citar os fatos de que a tuberculose é causada por germes ou que a Terra é esférica e contrapô-los a noções ridículas. Mas já vi pós-modernistas defenderem coisas igualmente absurdas. Um episódio que presenciei há muitos anos instigou o tema desta primeira coluna.
Durante uma aula de Filosofia da Ciência, um professor estava expondo o ponto de vista de alguns filósofos inspiradores do pós-modernismo, como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. O palestrante em questão parecia ser adepto, se não do pós-modernismo, pelo menos das ideias desses filósofos da ciência. Tentei argumentar a favor do ponto de vista que estou defendendo aqui e citei um exemplo, que eu achava incontestável, de como certas teorias viram fatos: o da descoberta de que o DNA (e não proteínas, como muitos cientistas pensavam) é o verdadeiro meio onde a informação genética dos seres vivos é armazenada. Depois de minha intervenção, o professor apenas retrucou: “e quem garante que um dia essa descoberta não será refutada?”. Meus olhos se arregalaram e eu fiquei sem palavras diante de uma adesão tão obstinada a uma posição filosófica. Eu não podia fazer melhor. Foi mais ou menos como explicar que 2+2=4 e no final ouvir o seguinte comentário: “quem garante que 2+2 não será igual a 5 um dia?”. Alguns alunos me olharam com uma expressão de schadenfreude, como se eu tivesse perdido o debate. O pós-modernismo goza de um incrível carisma. De qualquer forma, vou contar agora a história dessa descoberta, para que você julgue por si mesmo se ela é um fato ou “apenas uma teoria” (por sinal, “teorias” em ciência não são meras hipóteses. Elas são apoiadas por copiosos indícios). Se esta história não o convencer, tenho muitas outras que, assim espero, o farão.
A molécula de DNA foi descoberta ao longo dos anos 1860 pelo bioquímico alemão Friedrich Miescher. Ao investigar indícios anteriores de que o núcleo da célula devia armazenar os caracteres hereditários dos seres vivos, Miescher conseguiu isolar um novo tipo de substância, com composição química diferente das proteínas (a nova molécula continha o elemento químico fósforo), que ele chamou de nucleína. Tentativas subsequentes de identificar a composição do núcleo celular levaram à identificação dos cromossomos, através do uso de corantes que os tornavam visíveis durante a divisão celular. Em 1881, Edward Zacharias mostrou que a nucleína estava presente nos cromossomos. Estudos posteriores mostraram que os ácidos nucléicos (esse nome foi introduzido em 1899 por um aluno de Miescher) eram formados por três tipos de moléculas: um açúcar (no caso do DNA, desoxirribose), um grupo fosfato (um átomo de fósforo rodeado por quatro de oxigênio) e uma de quatro bases, adenina (comumente abreviada “A”), guanina (G), citosina (C) e timina (T).
Embora o DNA tenha despertado interesse como o possível armazenador da informação genética pouco depois de sua descoberta, esse interesse diminuiu e continuou baixo por cerca de 60 anos. Mesmo sabendo que os cientistas da época tinham um conhecimento de bioquímica muito mais limitado que o atual, não seria muito injusto dizer que esses 60 anos até que a importância do DNA fosse reconhecida foram um intervalo de tempo longo demais. Talvez o motivo principal para isso tenha sido o fato de a molécula de DNA ter apenas as quatro bases que poderiam ser usadas como “letras” num código genético. As proteínas eram feitas de 20 tipos diferentes de aminoácidos. (Na verdade, apenas duas “letras” são suficientes para transmitir ou armazenar qualquer tipo de mensagem. A tecnologia digital, da qual tanto dependemos hoje, utiliza uma série de “0”s e “1”s  para manipular a informação que faz nosso mundo funcionar. Na época, porém, os computadores não passavam de investigações matemáticas em pedaços de papel). Uma grande variedade de proteínas já era conhecida, enquanto o DNA, aparentemente monolítico, era comparativamente sem graça. As proteínas pareciam muito mais interessantes. A ideia era que proteínas poderiam produzir cópias de si mesmas no interior do núcleo. Este conteria um “gabarito” para cada uma delas. O DNA era visto como uma molécula estrutural, que provavelmente fornecia sustentação às proteínas nucleares. Além disso, uma hipótese, a do tetranucleotídeo, formulada pelo bioquímico Phoebus Levine, previa que as bases de DNA formavam uma sequência repetitiva do tipo AGCTAGCTAGCT... Com uma sequência assim, não se consegue comunicar nada. Essa hipótese se tornou muito influente devido à reputação de Levine, mas não era baseada em evidências sólidas e mais tarde foi refutada (mais um exemplo de ideia que não sobrevive ao escrutínio da ciência).
Contudo, as únicas proteínas encontradas no núcleo foram a protamina e as histonas. A protamina está presente nas células reprodutivas (boa parte da pesquisa inicial com ácidos nucleicos foi conduzida utilizando-se esperma de salmão) e as histonas são comuns em todas as outras células. A molécula de protamina, entretanto, é ainda mais simples que o DNA, sendo rica em um tipo de aminoácido, a arginina. Uma sequencia rica em “a”s parece tão ruim para armazenar informação quanto AGCTAGCT. Como, então, as histonas poderiam surgir da protamina? As histonas, por sua vez, são mais complicadas que a protamina, mas elas não se pareciam com um gabarito para todas as proteínas do corpo. 
Assim, até os anos 40, embora a existência dos genes já houvesse sido há décadas estabelecida por experimentos, não se sabia exatamente o que eles eram e nem qual era sua base física. Dois experimentos, um deles marcado pelo detalhismo e pela persistência, e o outro famoso por sua simplicidade e elegância, mudaram esse cenário em poucos anos. 
No Instituto Rockefeller, Oswald Avery e dois colegas, Colin Macleod e Maclyn MacCarty, começaram a investigar uma intrigante descoberta publicada em 1928 por Fred Griffith. Bactérias Streptococcus pneumoniae haviam sido classificadas em duas formas, a lisa (S de smooth, em inglês) e a rugosa (R). A primeira era virulenta, causando pneumonia. A segunda era relativamente inócua. Griffith observou que a forma S, depois de ser aquecida, morria e era incapaz de matar camundongos injetados com ela. Porém, se as bactérias S mortas fossem misturadas com bactérias R vivas, estas últimas se tornavam letais. Hoje sabemos que diversos microorganismos são capazes de incorporar genes de outras variedades ou até espécies – e foi exatamente isso o que ocorreu entre as formas S e R do pneumococo. Na época, a importância deste achado surpreendente foi imediatamente reconhecida por geneticistas. 
Cientistas do Rockefeller logo descobriram que a transformação ocorria mesmo sem a utilização de ratos. Bastava colocar as duas variedades de pneumococo juntas num prato para que ela acontecesse. Avery e seus colegas passaram a tentar identificar qual era o fator responsável pela transformação da cepa R em S. Métodos de fragmentação das bactérias foram desenvolvidos, permitindo que os pedaços fossem colocados numa centrífuga (um instrumento que gira em alta velocidade e separa os componentes numa mistura, enviando as partículas mais pesadas contidas num líquido para o fundo de um tubo). A equipe de cientistas iniciou então um processo de eliminação: ao invés de tentar descobrir de cara qual era o agente transformador, eles procuraram saber o que ele não era. Primeiro, enzimas que destruíam proteínas foram usadas. O princípio ativo – que não era uma proteína – continuava no líquido centrifugado. Em seguida, polissacarídeos presentes nas cápsulas que envolviam as bactérias foram eliminados. Restou apenas DNA e RNA. Avery, Mcleod e McCarty  usaram então a enzima ribonuclease para destruir o RNA. A solução continuava ativa. Por fim, a equipe utilizou desoxirribonucleodespolimerase, capaz de destruir DNA. A solução perdeu seu efeito. Esse experimento mostrou decisivamente que era o DNA, e não as proteínas, que armazenava a informação genética. 
Se o experimento de Avery foi suficiente para mudar a opinião dos bioquímicos, um outro experimento, brilhante por sua simplicidade, convenceu toda a comunidade científica e impulsionou os estudos sobre a química do DNA que culminaram com a descoberta do seu formato em hélice por Francis Crick e James Watson, em 1953. Martha Chase e Alfred Hershey utilizaram um simples liquidificador e dois meios de cultura de bactérias ligeiramente radioativos para mostrar de uma vez por todas que o DNA era a molécula da vida. No experimento Waring Blender, como ficou conhecido (Waring era a marca do liquidificador), bactérias E. coli foram cultivadas em dois meios diferentes: um contendo enxofre radioativo e outro contendo fósforo radioativo. Isso foi feito porque proteínas contém enxofre, mas não fósforo, enquanto DNA contém fósforo, mas não enxofre. Em seguida, as bactérias foram infectadas com bacteriófagos, vírus que, por serem extremamente reduzidos, não possuem as estruturas necessárias para se reproduzir (ver foto na pág. anterior). Bacteriófagos sequestram o maquinário de uma bactéria para fazer novas cópias de si mesmos. Portanto, eles necessariamente injetam dentro das bactérias seu material genético – as instruções para que elas produzam mais vírus. Hershey e Chase sabiam que os vírus eram compostos apenas por DNA e proteínas, mas ignoravam qual dos dois era injetado nas bactérias. Esse arranjo experimental permitiu que eles obtivessem duas amostras do mesmo vírus: numa delas as proteínas haviam incorporado enxofre radioativo e, na outra, o DNA havia incorporado fósforo radioativo. Por terem duas “assinaturas” radioativas diferentes, as duas substâncias utilizadas serviram, assim, para “etiquetar” os vírus (ver quadro acima). 
A seguir, eles infectaram novas bactérias E. coli com as duas amostras desses vírus. O material que fosse injetado dentro das bactérias continuaria nelas após o envelope do vírus ser removido de seu exterior. Hershey e Chase estavam justamente pensando em como eles iriam “lavar” o exterior das bactérias sem destruí-las e transformar todo o experimento num fiasco. Um colega emprestou-lhes o famoso liquidificador Waren, que se mostrou perfeito para a tarefa. O aparelho agitava as bactérias na medida certa para que os envelopes dos vírus fossem removidos, sem despedaçá-las. 
A primeira amostra de vírus, contendo proteínas etiquetadas com enxofre radioativo, resultou em bactérias infectadas que não emitiam radiação após serem colocadas no liquidificador, o que indicava que o material genético no interior das células não era proteína. A segunda amostra, etiquetada com fósforo radioativo, resultou em bactérias com a assinatura típica desse elemento, o que mostrou definitivamente que o DNA era a molécula responsável pela transmissão do material genético. 
O que esse exemplo e muitos outros ilustram é que a diferença entre ciência e superstição está no fato de a primeira fazer perguntas ao mundo e usar a engenhosidade humana afim de encontrar meios para que o próprio mundo as responda. O mundo real “disse” a Hershey e Chase que as proteínas não são o material genético. Não há como essa realidade mudar. Novas descobertas podem até modificar o que sabemos. Por exemplo, hoje se sabe que o RNA, a molécula prima do DNA, exerce uma série de funções no nosso organismo e nos de outros seres vivos. Em alguns vírus ele armazena o material genético. Em nós, além de desempenhar papéis na produção de proteínas a partir de DNA, ele também age como regulador da produção desses genes. Mas a humanidade sabe para sempre que proteínas não têm nada a ver com transmissão de características hereditárias – e que esse papel, com poucas exceções, é desempenhado pelo DNA.
A afirmação pós-modernista de que não há como descobrir verdades sobre o mundo é autocontraditória. Se ela for verdadeira, devemos incluir nessa brilhante constatação a própria filosofia pós-modernista. Em outras palavras, não há como saber se ela é válida. Então, por que acreditar nela? Os pós-modernistas não podem alegar que sua filosofia é a única exceção ao que pregam. Temos  de concluir que, se o pós-modernismo é verdadeiro, ele é falso. Se, por outro lado, há como determinar fatos sobre a realidade (o método científico o faz), o pós-modernismo também é falso, por sustentar que isso não é possível.    q

Até os anos 40, o papel do DNA como armazenador dos genes estava longe de ser definido.

 

Há um certo modismo filosófico bizarro que afirma que as crenças de povos pré-científicos são tão válidas para explicar o mundo quanto as teorias da ciência moderna. Essa corrente, que assume vários nomes, como multiculturalismo, desconstrucionismo, estudos culturais etc., é às vezes agrupada sob o termo pós-modernismo. Os pós-modernistas vêm grande significação no caráter provisório das teorias científicas. Vez por outra, modelos universalmente aceitos – que eles gostam de chamar de “paradigmas” – são demonstrados falsos. Sendo assim, dizem eles, nenhuma ideia é eterna. Não há como demonstrar que uma ideia é verdadeira. Uma determinada teoria é tão boa quanto qualquer outra, mesmo que as duas sejam mutuamente contraditórias. Esta coluna procura mostrar, através de exemplos, que essa conclusão não se justifica e está equivocada. Os exemplos são numerosos e surgem a toda hora, em laboratórios e instituições científicas espalhadas pelo mundo. E são publicados todos os meses em revistas como Nature, Science e muitas outras.

 Por sinal, “Revoluções”, o nome desta coluna, é outra palavra querida dos pós-modernistas. Mas meu conceito de revolução científica é diferente do deles. Para os pós-modernistas, a atividade científica é pouco mais do que um fenômeno sociológico, em que não importa muito o mérito relativo de diferentes teorias. Uma revolução científica é a substituição, a muito custo, de uma teoria por outra. Antes de ser descartada, a teoria substituída é vigorosamente defendida por um grupo interessado em manter seu status na ordem social constituída. Casos assim acontecem, mas essa abordagem da História da Ciência é muito limitada. Para mim, uma revolução científica acontece quando a ciência resolve dúvidas sobre o mundo, melhorando nosso entendimento dele. O que é errado passa a ser conhecido e o que não era certo, em muitos casos, torna-se certo. Para sempre.

Em princípio, todo conhecimento científico é provisório. Isso reflete uma postura de humildade na prática científica. Diferentemente das ideologias políticas e das religiões, a ciência não se apega de maneira arrogante a nenhuma ideia. Qualquer noção pode ser descartada, a qualquer momento, se forem coletados dados sobre o mundo real que a contrariam. Muitas o são, ao serem refutadas por observações. O árbitro final da validade de uma teoria são os experimentos. Em princípio, a ciência pode não determinar com certeza qual é a verdade, mas ela determina com certeza, todos os dias, o que não é verdade. Isso, por si só, já a torna superior às crenças tradicionais.

A aplicação desse princípio saudável pelos cientistas na busca pela verdade não implica, na prática, que todas as teorias científicas serão infalivelmente descartadas. Muito pelo contrário. Com o tempo, muitas teorias passam a ser avassaladoramente apoiadas pelas evidências, a ponto de serem promovidas à categoria de fatos. Por exemplo, ninguém (com exceção de fanáticos e excêntricos) contesta o fato de que a Terra tem o formato próximo ao de uma esfera. Hoje em dia é possível confirmar isso diretamente. Basta fotografar nosso planeta de qualquer um dos milhares de satélites artificiais atualmente em sua órbita. No passado, entretanto, esta era uma questão debatida. O fato de a Terra se mover também já foi questionado. Esses são apenas dois exemplos óbvios. Porém, a maioria do que a ciência moderna revela já foi indeterminado no passado – da constituição dos menores pedaços da matéria até nosso lugar no Universo.

O erro dos pós-modernistas foi ter generalizado as coisas. O fato de algumas teorias científicas se tornarem obsoletas não quer dizer que todas terão o mesmo destino. Para um pós-modernista, a teoria de que são espíritos maus que causam tuberculose é tão válida quanto a teoria de que essa doença é causada por germes. A ideia de que a Terra é esférica é tão boa quanto a ideia de que ela é plana. O intelligent design é tão válido quanto a evolução... você pegou a ideia.

Não estou aqui construindo um straw man – caricaturando ideias contrárias às minhas para que se tornem um alvo fácil. Sei que parece covardia citar os fatos de que a tuberculose é causada por germes ou que a Terra é esférica e contrapô-los a noções ridículas. Mas já vi pós-modernistas defenderem coisas igualmente absurdas. Um episódio que presenciei há muitos anos instigou o tema desta primeira coluna.

Durante uma aula de Filosofia da Ciência, um professor estava expondo o ponto de vista de alguns filósofos inspiradores do pós-modernismo, como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. O palestrante em questão parecia ser adepto, se não do pós-modernismo, pelo menos das ideias desses filósofos da ciência. Tentei argumentar a favor do ponto de vista que estou defendendo aqui e citei um exemplo, que eu achava incontestável, de como certas teorias viram fatos: o da descoberta de que o DNA (e não proteínas, como muitos cientistas pensavam) é o verdadeiro meio onde a informação genética dos seres vivos é armazenada. Depois de minha intervenção, o professor apenas retrucou: “e quem garante que um dia essa descoberta não será refutada?”. Meus olhos se arregalaram e eu fiquei sem palavras diante de uma adesão tão obstinada a uma posição filosófica. Eu não podia fazer melhor. Foi mais ou menos como explicar que 2+2=4 e no final ouvir o seguinte comentário: “quem garante que 2+2 não será igual a 5 um dia?”. Alguns alunos me olharam com uma expressão de schadenfreude, como se eu tivesse perdido o debate. O pós-modernismo goza de um incrível carisma. De qualquer forma, vou contar agora a história dessa descoberta, para que você julgue por si mesmo se ela é um fato ou “apenas uma teoria” (por sinal, “teorias” em ciência não são meras hipóteses. Elas são apoiadas por copiosos indícios). Se esta história não o convencer, tenho muitas outras que, assim espero, o farão.

A molécula de DNA foi descoberta ao longo dos anos 1860 pelo bioquímico alemão Friedrich Miescher. Ao investigar indícios anteriores de que o núcleo da célula devia armazenar os caracteres hereditários dos seres vivos, Miescher conseguiu isolar um novo tipo de substância, com composição química diferente das proteínas (a nova molécula continha o elemento químico fósforo), que ele chamou de nucleína. Tentativas subsequentes de identificar a composição do núcleo celular levaram à identificação dos cromossomos, através do uso de corantes que os tornavam visíveis durante a divisão celular. Em 1881, Edward Zacharias mostrou que a nucleína estava presente nos cromossomos. Estudos posteriores mostraram que os ácidos nucléicos (esse nome foi introduzido em 1899 por um aluno de Miescher) eram formados por três tipos de moléculas: um açúcar (no caso do DNA, desoxirribose), um grupo fosfato (um átomo de fósforo rodeado por quatro de oxigênio) e uma de quatro bases, adenina (comumente abreviada “A”), guanina (G), citosina (C) e timina (T).

Embora o DNA tenha despertado interesse como o possível armazenador da informação genética pouco depois de sua descoberta, esse interesse diminuiu e continuou baixo por cerca de 60 anos. Mesmo sabendo que os cientistas da época tinham um conhecimento de bioquímica muito mais limitado que o atual, não seria muito injusto dizer que esses 60 anos até que a importância do DNA fosse reconhecida foram um intervalo de tempo longo demais. Talvez o motivo principal para isso tenha sido o fato de a molécula de DNA ter apenas as quatro bases que poderiam ser usadas como “letras” num código genético. As proteínas eram feitas de 20 tipos diferentes de aminoácidos. (Na verdade, apenas duas “letras” são suficientes para transmitir ou armazenar qualquer tipo de mensagem. A tecnologia digital, da qual tanto dependemos hoje, utiliza uma série de “0”s e “1”s  para manipular a informação que faz nosso mundo funcionar. Na época, porém, os computadores não passavam de investigações matemáticas em pedaços de papel). Uma grande variedade de proteínas já era conhecida, enquanto o DNA, aparentemente monolítico, era comparativamente sem graça. As proteínas pareciam muito mais interessantes. A ideia era que proteínas poderiam produzir cópias de si mesmas no interior do núcleo. Este conteria um “gabarito” para cada uma delas. O DNA era visto como uma molécula estrutural, que provavelmente fornecia sustentação às proteínas nucleares. Além disso, uma hipótese, a do tetranucleotídeo, formulada pelo bioquímico Phoebus Levine, previa que as bases de DNA formavam uma sequência repetitiva do tipo AGCTAGCTAGCT... Com uma sequência assim, não se consegue comunicar nada. Essa hipótese se tornou muito influente devido à reputação de Levine, mas não era baseada em evidências sólidas e mais tarde foi refutada (mais um exemplo de ideia que não sobrevive ao escrutínio da ciência).

Contudo, as únicas proteínas encontradas no núcleo foram a protamina e as histonas. A protamina está presente nas células reprodutivas (boa parte da pesquisa inicial com ácidos nucleicos foi conduzida utilizando-se esperma de salmão) e as histonas são comuns em todas as outras células. A molécula de protamina, entretanto, é ainda mais simples que o DNA, sendo rica em um tipo de aminoácido, a arginina. Uma sequencia rica em “a”s parece tão ruim para armazenar informação quanto AGCTAGCT. Como, então, as histonas poderiam surgir da protamina? As histonas, por sua vez, são mais complicadas que a protamina, mas elas não se pareciam com um gabarito para todas as proteínas do corpo.

Assim, até os anos 40, embora a existência dos genes já houvesse sido há décadas estabelecida por experimentos, não se sabia exatamente o que eles eram e nem qual era sua base física. Dois experimentos, um deles marcado pelo detalhismo e pela persistência, e o outro famoso por sua simplicidade e elegância, mudaram esse cenário em poucos anos.

No Instituto Rockefeller, Oswald Avery e dois colegas, Colin Macleod e Maclyn MacCarty, começaram a investigar uma intrigante descoberta publicada em 1928 por Fred Griffith. Bactérias Streptococcus pneumoniae haviam sido classificadas em duas formas, a lisa (S de smooth, em inglês) e a rugosa (R). A primeira era virulenta, causando pneumonia. A segunda era relativamente inócua. Griffith observou que a forma S, depois de ser aquecida, morria e era incapaz de matar camundongos injetados com ela. Porém, se as bactérias S mortas fossem misturadas com bactérias R vivas, estas últimas se tornavam letais. Hoje sabemos que diversos microorganismos são capazes de incorporar genes de outras variedades ou até espécies – e foi exatamente isso o que ocorreu entre as formas S e R do pneumococo. Na época, a importância deste achado surpreendente foi imediatamente reconhecida por geneticistas.

Cientistas do Rockefeller logo descobriram que a transformação ocorria mesmo sem a utilização de ratos. Bastava colocar as duas variedades de pneumococo juntas num prato para que ela acontecesse. Avery e seus colegas passaram a tentar identificar qual era o fator responsável pela transformação da cepa R em S. Métodos de fragmentação das bactérias foram desenvolvidos, permitindo que os pedaços fossem colocados numa centrífuga (um instrumento que gira em alta velocidade e separa os componentes numa mistura, enviando as partículas mais pesadas contidas num líquido para o fundo de um tubo). A equipe de cientistas iniciou então um processo de eliminação: ao invés de tentar descobrir de cara qual era o agente transformador, eles procuraram saber o que ele não era. Primeiro, enzimas que destruíam proteínas foram usadas. O princípio ativo – que não era uma proteína – continuava no líquido centrifugado. Em seguida, polissacarídeos presentes nas cápsulas que envolviam as bactérias foram eliminados. Restou apenas DNA e RNA. Avery, Mcleod e McCarty  usaram então a enzima ribonuclease para destruir o RNA. A solução continuava ativa. Por fim, a equipe utilizou desoxirribonucleodespolimerase, capaz de destruir DNA. A solução perdeu seu efeito. Esse experimento mostrou decisivamente que era o DNA, e não as proteínas, que armazenava a informação genética.

Se o experimento de Avery foi suficiente para mudar a opinião dos bioquímicos, um outro experimento, brilhante por sua simplicidade, convenceu toda a comunidade científica e impulsionou os estudos sobre a química do DNA que culminaram com a descoberta do seu formato em hélice por Francis Crick e James Watson, em 1953. Martha Chase e Alfred Hershey utilizaram um simples liquidificador e dois meios de cultura de bactérias ligeiramente radioativos para mostrar de uma vez por todas que o DNA era a molécula da vida. No experimento Waring Blender, como ficou conhecido (Waring era a marca do liquidificador), bactérias E. coli foram cultivadas em dois meios diferentes: um contendo enxofre radioativo e outro contendo fósforo radioativo. Isso foi feito porque proteínas contém enxofre, mas não fósforo, enquanto DNA contém fósforo, mas não enxofre. Em seguida, as bactérias foram infectadas com bacteriófagos, vírus que, por serem extremamente reduzidos, não possuem as estruturas necessárias para se reproduzir (ver foto ao lado).

Bacteriófagos sequestram o maquinário de uma bactéria para fazer novas cópias de si mesmos. Portanto, eles necessariamente injetam dentro das bactérias seu material genético – as instruções para que elas produzam mais vírus. Hershey e Chase sabiam que os vírus eram compostos apenas por DNA e proteínas, mas ignoravam qual dos dois era injetado nas bactérias. Esse arranjo experimental permitiu que eles obtivessem duas amostras do mesmo vírus: numa delas as proteínas haviam incorporado enxofre radioativo e, na outra, o DNA havia incorporado fósforo radioativo. Por terem duas “assinaturas” radioativas diferentes, as duas substâncias utilizadas serviram, assim, para “etiquetar” os vírus (ver quadro abaixo). 

A seguir, eles infectaram novas bactérias E. coli com as duas amostras desses vírus. O material que fosse injetado dentro das bactérias continuaria nelas após o envelope do vírus ser removido de seu exterior. Hershey e Chase estavam justamente pensando em como eles iriam “lavar” o exterior das bactérias sem destruí-las e transformar todo o experimento num fiasco. Um colega emprestou-lhes o famoso liquidificador Waren, que se mostrou perfeito para a tarefa. O aparelho agitava as bactérias na medida certa para que os envelopes dos vírus fossem removidos, sem despedaçá-las.

A primeira amostra de vírus, contendo proteínas etiquetadas com enxofre radioativo, resultou em bactérias infectadas que não emitiam radiação após serem colocadas no liquidificador, o que indicava que o material genético no interior das células não era proteína. A segunda amostra, etiquetada com fósforo radioativo, resultou em bactérias com a assinatura típica desse elemento, o que mostrou definitivamente que o DNA era a molécula responsável pela transmissão do material genético.

O que esse exemplo e muitos outros ilustram é que a diferença entre ciência e superstição está no fato de a primeira fazer perguntas ao mundo e usar a engenhosidade humana afim de encontrar meios para que o próprio mundo as responda. O mundo real “disse” a Hershey e Chase que as proteínas não são o material genético. Não há como essa realidade mudar. Novas descobertas podem até modificar o que sabemos. Por exemplo, hoje se sabe que o RNA, a molécula prima do DNA, exerce uma série de funções no nosso organismo e nos de outros seres vivos. Em alguns vírus ele armazena o material genético. Em nós, além de desempenhar papéis na produção de proteínas a partir de DNA, ele também age como regulador da produção desses genes. Mas a humanidade sabe para sempre que proteínas não têm nada a ver com transmissão de características hereditárias – e que esse papel, com poucas exceções, é desempenhado pelo DNA.

A afirmação pós-modernista de que não há como descobrir verdades sobre o mundo é autocontraditória. Se ela for verdadeira, devemos incluir nessa brilhante constatação a própria filosofia pós-modernista. Em outras palavras, não há como saber se ela é válida. Então, por que acreditar nela? Os pós-modernistas não podem alegar que sua filosofia é a única exceção ao que pregam. Temos  de concluir que, se o pós-modernismo é verdadeiro, ele é falso. Se, por outro lado, há como determinar fatos sobre a realidade (o método científico o faz), o pós-modernismo também é falso, por sustentar que isso não é possível.

 

 

TAGS: genetica, dna, genes

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APLICAÇÕES DA NANOTECNOLOGIA EM MEDICINA: NOVOS SISTEMAS PARA DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO
Palestrante: Prof. Dr. Valtencir Zucolotto
Laboratório de Nanomedicina e Nanotoxicologia IFSC - USP
Data: 08.03.2012
Horário: 16:00h
Transmissão via Internet (iptv.usp.br)
Entrada franca
Local: Auditório Abrahão de Moraes - Instituto de Física da USP

Neste colóquio será abordado o estudo de interações entre  nanopartículas poliméricas e metálicas com biomoléculas (proteínas,  anticorpos, membranas e células), com ênfase no potencial destes nanobiocompósios para o diagnóstico e tratamento de doenças, incluindo  doenças infecciosas e câncer.


FÍSICA NA CULTURA - “O PRÊMIO NOBEL DE 2011 E A EXPANSÃO ACELERADA DO UNIVERSO.”
Palestrante: THAISA STORCHI BERGMANN
Data: quinta-feira, 15 de março às 19:30.
Local: Livraria Cultura
Bourbon Shopping Country - Av. Túlio de Rose, 80 - Passo DAreia
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